Il-Ħadd, 15 ta’ Ġunju 2008

Ontologia de potências

O mapa (em alto relevo esboçado) está em:

http://diferenssa.blogspot.com/

A punchline?

Depois de meses longe da coisa, escrevi o posfácio a Excessos e Excessões:


N

ietzsche diagnosticava que a atividade conceitual nascia da postulação da identidade do não-idêntico. Pode parecer que a identidade é postulada – ou mesmo projetada – sobre uma tela isenta dela. Procurar ver ao longe uma ontologia sem cabimento não é apertar os olhos até ver uma tela sem identidades: postular a identidade do não-idêntico acontece nos meandros onde nos encontramos. Não se trata de encontrar os ur-não-idênticos – uma ontologia de diferenças está muitas vezes prestes a estar refém de uma postulação de identidade – mas de espreitar a cada pensamento o não-idêntico que havia antes. O processo de interferência no que antes era não-idêntico é uma das formas em que o pensamento esbarra no mundo – e põe as diferenças em fuga. A interferência tem uma microdinâmica; no meio dela as singularidades roçam o pensamento. Singularidades que não ficam prontas e que, já que estão ensaiando, não podem ser os itens que constituem, sustentam e substanciam universalidades. Entre as singularidades em fuga encontramos mais primadonas que matérias prima; elas aparecem em todos os momentos em que o pensamento – mesmo o que às vezes parece rasteiro – se vê as voltas com alguma hybris. Excessos; e excessos não ficam prontos.

Singularidades não são indivíduos – bolhas autônomas prontas em que cada pedaço se submete a uma ordem superior. Elas se fragmentam e são transitórias – nômades e granuladas. Pessoas singulares tampouco são prédios prontos com elevador e garagem, são conspirações de pedaços. Pedaços sujeitos a contaminação vinda de toda parte são mais como singularidades fugidias. Assim, a perspectiva de primeira pessoa é um ponto de vista de onde passam por experiências os pedaços que estão, em algum sentido, dentro de um território – uma posição com respeito à experiência. Não é certo que de uma confederação de pedaços postos em certa posição (de primeira pessoa) tenha que decorrer a instituição de reinos autônomos dos indivíduos e nem é a partir de tais reinos autônomos que começa a política. As relações políticas com o Outro começam com os outros pedaços dentro de nós; essas singularidades estão sob o risco de ficarem abarcadas, tratoradas, pré-pensadas. Também com elas há relações de cabimento. E então, quais são as singularidades que postulamos, instituímos ou reconhecemos? – lidar com o que não cabe, com o exemplo, com a exceção. Como elas não estão prontas, elas não estão prontas para figurar em uma lista. Encontrar uma singularidade em fuga é talvez uma capacidade do pensamento. Uma capacidade que diagnostica alguma coisa de ontológico: escapam as singularidades, e elas nem são o princípio de tudo.

Se a filosofia trata de começos e não de princípios, tento destrinchar o começo de uma ontologia sem cabimento. E vendo de longe todos os capítulos de Excessos e Exceções emaranhados, me pergunto como seguir o fio da meada de tal ontologia; estar às voltas com o descabido ou em torno do que não cabe. Uma das pedras no sapato das identidades sempre foi a possibilidade – a possibilia faz as coisas prenhes de outras coisas; as deixam cheias do que não é elas. Vejo ao longe esses capítulos e escuto um mantra quase rouco: existir é tornar possível. Existir é carregar potência e, assim, carregar o que não cabe. O pensamento se mete com singularidades que não cabem porque o mundo está repleto do que não cabe em si – do que excede, do que transborda. São as potências que não se encaixam; e, assim, parece que o pensamento é uma parte desse mobiliário de rodinhas do universo que monta teias de identidades em um cenário em que nada cabe em si. O mantra vai ganhando novas vozes e soa como um coro eleata: nada existe que não possa afetar. O pensamento faz a experiência da demasia: cada caso pensado está em outro – como se a possibilia colocasse mãos estendidas na beirada de todas as coisas. Procuro me afastar do coro, tento focar no que não tem cabimento. O pensamento também está sempre ébrio de começos – se esforça em fixar conteúdos que deslizam. Como nem fica fixo o espaço entre as estrelas, talvez o pensamento seja um sintoma de que por toda parte ficam sobras.