C
de “Cabimento”
De muitas coisas, por exemplo, dos pensamentos, esperamos que elas tenham cabimento. Descartamos pensamentos se eles não cabem: isso é descabido, não tem o menor cabimento. Imagina-se que seria desejável que tivéssemos idéias com o maior cabimento. Quanto mais cabimento, melhor. Poderíamos imaginar uma medida do cabimento – do encaixe perfeito até o ovo de avestruz dentro de um dedal. Há coisas que parecem que tem cabimento, mas que, por um triz (ou dois trizes), não cabem onde as queremos colocar. Medir o cabimento seria como contar trizes – por quantos trizes não aconteceu? Ah, tantos assim, então é não foi que não aconteceu por pouco. Nem tinha cabimento esperar que acontecesse. Contar trizes é como contar acontecimentos. Mas os acontecimentos são famosos por se embaralharem uns nos outros – puxamos um para contar e aparecem logo três, entrelaçados. E quando começamos a contar trizes nos perdemos na complexa geografia dos mundos possíveis: é mais possível que a uva que você encontrou na geladeira fosse uma jabuticaba ou que este livro fosse uma bolha de sabão? Se tivéssemos um trizômetro, mais uma ou duas manivelas nos permitiria montar um medidor de cabimentos. Mas tudo isso é difícil de começar a medir: acontecimentos, pensamentos, cabimentos.
Em geral, quando dizemos que alguma coisa não aconteceu por um triz, há alguma coisa que pensamos que ia acontecer. Quando apelamos para os trizes estamos diante de pensamentos que, de alguma maneira, roçam nos acontecimentos. Trata-se de uma relação entre o que prevemos – ou tememos, ou esperamos, ou torcemos – e o que acontece. E quando medimos para ver se os pensamentos – ou outras coisas – cabem, onde esperamos que eles caibam? Quando falamos em cabimento, evocamos a aceitabilidade de alguma coisa: o que é cabível é aceitável. Mas em que caixa devem caber nossos pensamentos? Alguém poderia dizer: na caixa daquilo que acontece. Ou na caixa daquilo que julgamos que acontece. Não tem cabimento dizer que algum homem engravida porque julgamos que tal coisa não pode acontecer. Quando estamos falando de cabimento tratamos de como os acontecimentos encaixotam os pensamentos: também aqui os pensamentos roçam (nos caixotes) dos acontecimentos. Falar de cabimento parece ser falar de como os pensamentos se encaixam no (que supomos ser) o mundo. Medir o cabimento seria então medir o encaixe entre aquilo que pensamos e como as coisas são. Medimos o encaixe de uma estante entre o sofá e o armário comparando as dimensões do espaço entre os outros móveis e as dimensões da estante. Caber é às vezes entendido como ter lugar – quando dizemos, por exemplo, que o bode cabe na sala, mas não cabe no banheiro. Então nos perguntamos se tem lugar para um pensamento. (Deve ser por isso que dizemos que fazemos colocações – se houver lugar.) Pensar fica parecendo ser colocar alguma coisa entre as caixas e sacos do mundo, e ver se tem cabimento. O cabimento invoca a idéia de que a relação entre o que pensamos e o que existe é de encaixe; se pudermos medir o cabimento poderemos medir as proporções daquilo que pensamos e daquilo que há.
Caber parece, às vezes, também, ser adequado. Falamos que não cabe ao médico decorar nossa casa e que cabe dar a César aquilo que lhe cabe. A filosofia já falou de adequar o intelecto à coisa – e de adequar a coisa ao intelecto. Quando pensa nessas adequações, a filosofia se acostumou a estar prestes a tratar da verdade: ver se o intelecto se encaixa na coisa. A falta de cabimento parece uma medida da falsidade. Um pensamento verdadeiro é aquele que cabe na caixinha. Ter vontade de pensar verdades é ter vontade de encontrar coisas para as quais há lugar dentro das gavetas e prateleiras do mundo. Esbarramos logo com duas propriedades do encaixotamento: várias caixas podem encaixotar a mesma coisa: compramos a tangerina em uma embalagem de plástico, colocamos ela em uma gaveta, depois em uma prateleira, depois em uma mochila e depois embalamos grande parte dela (que cabia dentro da casca) dentro de nós. Porém também várias coisas podem caber (se adequar) em uma caixa – e várias coisas podem caber a uma caixa. A diferença entre “caber em” e “caber a” parece dar pano para manga: por exemplo, quando quer verdade o intelecto se esfalfa para caber em alguma parte do mundo, mas quando quer deferência o intelecto entende que cabe a alguma parte do mundo a ele se adequar. Quando falamos de “caber a”, estamos também apontando para as situações em que dizemos: cabe ao soldado marchar, cabia ao escrivão copiar. Aqui é como se o pensamento “o soldado marcha” não tem seu cabimento em questão, mas ao soldado cabe marchar, é ele que deve caber no pensamento. O cabimento, portanto, diz respeito ao encaixe, de ambos os lados, entre o que pensamos e sobre o que pensamos.
Muitos recipientes, muitos conteúdos. Há muitas formas de marchar. Dizer que um soldado marchando é um corpo obedecendo ordens tem cabimento. Muitas formas de embalar, muitas formas de encaixar. O cabimento evoca também o tema da autoridade: a sansão daquilo que determina o que cabe em um recipiente, o que cabe a um conteúdo. Pensar no que há e no que pensamos em termos de cabimento é entender a relação entre pensamento e mundo como uma espécie de quebra-cabeças onde as pontas das peças se encaixam. Ou nós temos que encontrar pensamentos que caibam no mundo, ou o mundo tem que encontrar um modo de fazer aquilo que lhe cabe. No quebra-cabeça, o encaixe nunca é unívoco – há muitos recipientes, muitos conteúdos. Pode ser que nossas descrições, por mais cheias de protuberâncias e reentrâncias que elas sejam, caibam em mais de uma coisa – e pode ser que não caibam em nenhuma. Há também muitas maneiras de caber em uma previsão. Os oráculos bem fazem uso dessa propriedade do encaixotamento. O oráculo disse a Édipo que ele mataria seu pai, dormiria com sua mãe. E, na caixinha não cabia apenas quem nela colocou Édipo; mais de um par de pessoas cabiam nessa previsão. Macbeth se sentia seguro que apenas quando a floresta se levantasse ele correria perigo. Mas a floresta se levantou quando o exército cortou seus galhos e se escondeu atrás deles. Os significados das palavras são como fundos falsos das caixas: aquelas torrentes de significado que chamamos – tentando domesticá-las – de metáforas fazem com que caiba aquilo que não parecia caber. Como encontrar a agulha de um fato em um palheiro de metáforas? Fica Macbeth amaldiçoando as bruxas que mentem enquanto falam a verdade.
Os pensamentos e os acontecimentos têm, entretanto, outra coisa em comum: ambos podem escapar da autoridade. Para isso falamos de exceções (e também de excessos). Cabe ao soldado marchar, mas ele pode parar de marchar. Em um conto muito citado de Melville, Bartleby, um escrivão, resolve que não vai mais copiar dizendo: “eu prefiro não”. Tanto acontecimentos quanto pensamentos podem não ter cabimento. Encontramos coisas singulares – não meros exemplos de alguma coisa geral – quando essas coisas não fazem o que cabe aos exemplares fazer. Encontramos pensamentos singulares – que não são apenas casos de algum pensamento com cabimento – quando o pensamento não tem cabimento. Por mais que a singularidade caiba aqui e ali, é apenas quando ela foge dos estribilhos que nós conseguimos nota-la. Se tudo tivesse cabimento – e tudo fizesse o que lhe é cabido – teríamos casos exemplares, não teríamos casos singulares. É talvez por isso que os pensamentos sempre podem ser contorcidos, distorcidos, retorcidos; assim temos a chance de poder olhar para o movimento que as coisas singulares fazem quando se tornam exceção. Ah, as exceções. Alguém pode achar que as exceções acabam sempre entrando nos trilhos; um cisne preto virou exceção, mas depois criamos uma categoria que é categoria dentro de outra categoria e, pronto, já havia um trilho só para cisnes como ele – o que era um caso singular se tornou um caso exemplar. D. H. Lawrence (em “Poetry in Chaos”) apresenta uma imagem interessante: vivemos em um guarda-chuva de ordem em que todas as coisas parecem ter o seu lugar em uma estrutura articulada quase que pré-fabricada, tudo parece ter cabimento. Eventualmente, o guarda-chuva é furado e vemos o céu do outro lado da ordem. O furo logo é remendado e o remendo é pintado com um pedaço do céu. Assim a ordem é restaurada – o que era singular, se torna exemplar. Porém olhar exceção (a falta de cabimento) é olhar o momento mesmo do furo do guarda-chuva. O movimento de sair do cabimento. Quando as coisas escapam do cabimento, o pensamento pode focar nela estando também sem cabimento. Os movimentos dos pensamentos de buscarem atalhos, buracos e ladeiras escorregadias entre o que pensa permite que ele fique cara a cara com as exceções, não quando elas já estão enquadradas, mas quando elas destoam do que é apenas mais um caso.
O pensamentos e os acontecimentos têm uma intimidade com o cabimento como têm uma cosangüinidade com o movimento. A idéia de cabimento evoca, além da autoridade que faz caber (por exemplo, a autoridade da gaveta em determinar que o elefante nela não cabe), a idéia de obediência: ter cabimento é não começar nada, não ser um ponto de partida; é ocupar um posto – que já existia. Caber é encaixar e fica encaixado aquilo que ocupa um lugar em um plano organizado. Aquilo que tem cabimento obedece – faz o que lhe cabe. Não ter cabimento é começar alguma coisa diferente – que não cabe em um planejamento pronto. A obediência devida: ao soldado marchar, ao escrivão escrever. Fora do cabimento começamos um novo, que não tem lugar, mas que cria para si um lugar. As coisas quando já estão descritas, já tem um lugar para ocupar – se elas não o ocupam, não tem cabimento. O pensamento se move porque nele não há um conjunto fixo de descrições. O pensamento está entre as coisas que pode escapar. Nem os pensamentos e nem os acontecimentos podem não ter cabimento todo o tempo: é dos lugares que eles ocupam que eles começam o seu movimento. E o pensamento é o que fica pastoreando o rebanho daquilo que tomamos como cabível. A exceção é também detectada apenas no movimento. Aquilo que não cabe nas caixas que estão disponíveis. Novas caixas virão, mas ali, naquela tentativa de encaixar, houve um excesso que não coube (não teve o menor cabimento). ‘Exceção’ é ela mesma uma palavra excepcional, com sons de ‘s’ e sem ‘s’ entre suas letras. Se puséssemos logo, sem nenhum cabimento, dois ‘s’ na palavra escreveríamos ‘excessão’. Todo excesso, grande ou pequeno, depende do cabimento – para ser excesso tem que estar fora de algum cabimento. Falar de escapar, de estar sem cabimento está próximo de falar de excessos. Assim, o pensamento tem algo que não cabe entre os acontecimentos, que lhe excede. E o excesso pode vir a ter cabimento mais tarde. No movimento entre agora e mais tarde, saltam aos olhos os excessos.
Um taxonomista encontra uma guardadora de excessos. A taxonomista está com uma voz conclusiva:
Taxonomista: Pensamos aquilo que cabe na classificação das coisas, na ordem do mundo. Todo o resto, o excesso, não tem cabimento.
Guardador de excessos: Nossas descrições das coisas sempre admitem que no meio dos conceitos ficaram buracos estreitos. Se tivermos apenas descrições prontas, todas as coisas poderão apenas exemplifica-las, deixaremos de cheirar a diferença entre um incenso de chocolate e um incenso de maracujá ou entre um incenso de maracujá amarelo e um incenso de maracujá doce, ou entre um incenso de maracujá doce com fumaça branca e um incenso de maracujá doce com fumaça marrom, ou entre...
Taxonomista: Mas poderemos alguma hora eventualmente terminar a descrição e pronto, o acontecimento estará ali – ainda que talvez para tanto precisemos de descrições que ocupem muitos volumes.
Guardador de excessos: Não poderemos. Pensamos, pensamos e sentimos o apelo para pensar mais. Enquanto isto, as coisas continuam acontecendo. E cada acontecimento tem a capacidade de escapar das emboscadas que lhes fazemos com os conceitos.
Exercícios para ficar sem o menor cabimento:
1. Desafinado. Ter cabimento parece muito com afinar. Mas o que era uma melodia desafinada pode ter se tornado uma outra melodia, com um jeito certo (cabível) de ser tocada de maneira afinada. Entre uma melodia e outra, houve um momento parecido com aquele em que surge uma exceção. De tanto desafinar ao cantarolar uma cantiga, podemos acabar em outra cantiga. Qual?
2. Faça alguma coisa que não tem cabimento simultaneamente com 7 partes do seu corpo (sempre divida as partes do seu corpo de uma maneira que não tenha cabimento). Quanto tempo demorou para que os gestos e caras e bocas e palavras sem cabimento se tornassem cabíveis?
3. Em Tristana, filme de Buñuel, uma personagem vira para outra e diz: dentre as 850 pilastras da mesquita de Códoba, todas aparentemente iguais, qual delas você prefere? A outra personagem responde que a pergunta não tem cabimento. Como medir o cabimento de uma pergunta assim? Contando as diferenças entre as pilastras?
4. Considere como uma pedra não tem cabimento (para quem quer visitar seus interiores) já que ela, nas palavras de Wislawa Szymborska, está fechada:
Eu toco na porta da frente da pedra
E digo: “É apenas eu, deixe-me entrar
Quero penetrar nos seus interiores
Dar uma olhada
Respirar um pouco dos teus ares...”
“Vá embora”, responde a pedra.
“Eu estou fechada
mesmo que você me quebre em pedaços
nós todas estaremos ainda fechadas
Você pode nos triturar em areia
E ainda assim nós não te dexaremos entrar”